A caridade pressupõe e transcende a Justiça

Colunistas Rogério Santos

Oferecer uma esmola, ajudar alguém em sua indigência, socorrer o outro em sua necessidade, são alguns dos incontáveis atos da caridade pessoal. A virtude da caridade é uma via tão excelente e elevada que não podemos reduzi-la apenas a gestos e atitudes particulares. Seu sentido e aplicação insere-se na vida ética e deve penetrar os âmbitos social, jurídico, cultural, político e econômico.

A tentativa de confinar o valor da caridade ao âmbito subjetivo das relações pessoais, religiosas ou assistencial é uma das estratégias de manipulação da linguagem, fruto do marxismo cultural que trabalha para esvaziar o sentido das palavras e desconstruir conceitos clássicos. Falarei sobre isso em outro artigo.

Voltemos à caridade e a seu sentido clássico. A caridade é o “critério supremo e universal de toda a ética social”. (DSI 204) É ela que dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo. Configura-se, além disso, como princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos. (CV 2)

Não estamos acostumados a utilizar o termo caridade no campo político. Damos preferência à palavra “justiça” por parecer expressar melhor a luta popular por direitos sociais. Um dos principais motivos da escolha pelo termo justiça à caridade é que “justiça” expressa melhor o meu direito, enquanto “caridade” implica em dever para com o outro. Em outras palavras, justiça é dar ao outro o que é dele, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir; e caridade é oferecer ao outro do que é meu, numa decisão de amor que exige de mim a iniciativa de doação, e nem todos estão dispostos a isto…

A caridade, nunca existe sem a justiça, pois, não posso dar ao outro do que é meu sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça (cf. CV, 6). A justiça é, pois, o primeiro caminho da caridade, a “medida mínima da caridade”, como ensinou Paulo VI.

A construção de uma boa sociedade não pode fundamentar-se apenas em “relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão”. A nossa sociedade vai mal porque despreza os fundamentos da caridade e tenta equilibrar-se exclusivamente sobre os pilares da justiça. As instituições jurídicas são, obviamente, boas e necessárias para o justo equilíbrio das relações humanas. No entanto, a justiça sozinha é incapaz de realizar uma boa sociedade, pois o juiz que repara com equidade os prejuízos materiais sofridos por determinada parte do processo, não conseguirá também garantir o reestabelecimento da amizade entre as partes. “Se a justiça é, em si mesma, apta para ‘servir de árbitro’ entre os homens na recíproca repartição justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor é capaz de restituir o homem a si próprio” (DM, 14) e o relacionamento fraterno.

Sim, a justiça é elemento constitutivo de uma boa sociedade, mas sem a caridade os homens não poderão alcançar a fraternidade. A caridade pressupõe e transcende a justiça. “Nenhuma legislação, nenhum sistema de regras ou de pactos conseguirá persuadir homens e povos a viver na unidade, na fraternidade e na paz, nenhuma argumentação poderá superar o apelo da caridade.”

Reduzir a caridade apenas a uma inspiração da ação individual é esvaziá-la de sua grandeza. É preciso acreditar nela como “força capaz de suscitar novas vias para enfrentarmos os problemas do mundo de hoje e para renovar profundamente, desde o interior das estruturas, as organizações sociais e os ordenamentos jurídicos.” (DSI 207)

 

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