
Embora hoje muito se fale sobre o direito universal à saúde, a sociedade brasileira ainda tem dúvidas sobre o que, de fato, significa saúde pública. Mais do que hospitais e campanhas de vacinação, saúde pública é um direito básico de todo cidadão — independentemente de classe social — e um dever do Estado.
Mas como essa ideia se consolidou no Brasil?
A noção de saúde como bem coletivo tem origem na Europa dos séculos XVII e XVIII, quando o crescimento das cidades trouxe consigo novos desafios: epidemias, altos índices de mortalidade e a necessidade de saneamento básico. Foi nesse contexto que os governos começaram a assumir responsabilidades com a saúde da população.
No Brasil, esse movimento ganhou força durante a República Velha, com campanhas de saneamento e vacinação obrigatória — especialmente contra doenças como a varíola e a febre amarela. Essas ações estavam concentradas nas regiões que impulsionavam a economia, como as áreas cafeeiras do Sudeste.
Ainda assim, o acesso à saúde era bastante limitado. Criado em 1977, o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era ligado ao Ministério da Previdência e fornecia atendimento com uma grande ressalva: apenas quem possuía emprego formal e contribuía com a Previdência Social — ou seja, os trabalhadores com “carteira assinada” — tinha direito ao atendimento.
A população fora do mercado formal — incluindo desempregados, trabalhadores informais e donas de casa — era simplesmente excluída desse sistema. Para se ter uma ideia, em 1984 os desempregados representavam 7,1% da população economicamente ativa, segundo o IBGE. Essa parcela era obrigada a recorrer ao sistema privado ou a serviços pontuais oferecidos por prefeituras, estados, Santas Casas de Misericórdia e hospitais universitários.
De acordo com o médico sanitarista Hêider Aurélio Pinto, essa saúde “exclusiva” para trabalhadores surgiu por pressão das grandes indústrias, que queriam manter seus funcionários saudáveis e produtivos. “Saúde não era considerada um direito, era um problema individual”, afirma. Problemas como uma fratura ou doenças não transmissíveis eram de responsabilidade do cidadão — o Estado não se envolvia.
Esse modelo excludente mudou com um marco histórico: a Constituição Federal de 1988, que passou a reconhecer a saúde como direito de todos e dever do Estado. Nascia, então, o Sistema Único de Saúde (SUS) — gratuito, descentralizado e universal.
O SUS articula ações de promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento, e está presente em todos os municípios do Brasil. Vai muito além do pronto atendimento: realiza campanhas de vacinação, combate a endemias como a dengue, monitora a qualidade da água e oferece desde exames laboratoriais até transplantes.
A importância do SUS ficou evidente durante a pandemia da Covid-19, quando foi o principal responsável pela vacinação em massa, testagens e internações. A crise sanitária também reacendeu o debate sobre o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS), parceira dos países na definição de políticas públicas.
Hoje, o conceito de saúde pública no Brasil vai além do atendimento médico: inclui educação em saúde, vigilância sanitária, saneamento básico e políticas de inclusão social. É fruto de lutas históricas e segue enfrentando desafios como o subfinanciamento e as desigualdades regionais.
Mas uma coisa é certa: sem saúde pública, não há justiça social nem democracia plena.
*Dra Simone Neri, médica e gestora em Saúde pela FGV para a coluna Saúde Para Todos