Já ouvi diversas vezes o porquê de eu não ter um cão guia
Por: Bia Santana
Resolvi escrever sobre o assunto para sanar dúvidas de quem enxerga e de quem também é cego como eu.
Quantas pessoas você conhece que tem um cão-guia? Provavelmente a resposta seja nenhuma ou um número bem baixo. Quantos deficientes visuais já encontraram com um cão-guia? Novamente nenhum ou um número bem baixo.
Somos cerca de 8 milhões de deficientes visuais no Brasil, o maior instituto de cães-guias da América Latina fica aqui, Instituto Magnus, próximo a Sorocaba e entregam cerca de 40 cães por ano: um número que parece baixo, mas é bem alto.
Há alguns meses, resolvi optar por tentar um. Para ter o cão não basta querer, muito menos ter dinheiro para comprar e não é para todos.
Primeiro passo: entrei no site da instituição e me inscrevi, não sabia, mas aí já estava em avaliação, preenchemos dados e mais dados sobre rotina e dados pessoais.
Passei! Eles me ligaram, conferiram alguns dados, me pediram vídeos da minha casa, dos meus caminhos, eu andando sozinha, cada um com suas especificações. Passei!
O que eles avaliam até aqui, tenho minha opinião, são vários institutos cada um com suas regras e recursos, apenas afirmo que não devem mentir em nenhum momento.
Na terceira etapa, visitaram minha casa, conferiram as condições de vivência e seguridade para o cão, algumas mudanças, tais como meus comprimidos e produtos de limpeza em locais baixos é arriscado. Ele vai querer brincar podendo ingerir acidentalmente esses produtos e passar mal. Mudamos de lugar.
Em minha casa, batemos um super papo, vou passar algumas informações que achei relevante ou bacana.
Até o cão estar pronto para guiar o cego, passou por um longo percurso: nasceu, fica um tempo no instituto, vai para uma família socializadora por um ano, volta para o instituto, treina para ser um cão-guia, depois vai para o cego. Então, o instituto pede para não mudar a rotina até o cego confiar no cão e vice-versa. Importante frizar que a cada 10 cães apenas 2 ou 3 chegam até essa fase. Ele tem que se sentir bem com a função de guia, senão é doado ou aproveitado em tratamento para autistas.
Para todo esse treinamento é gasto cerca de 120 mil reais por cão pago pelo instituto e seus apoiadores. O deficiente visual custeia somente ração e medicamento de pulgas, cerca de 500 reais mensais (não inclui veterinário, banho etc.)
Maltratar um cão não é apenas bater, ele é um cão-guia, vai andar com o cego. Deixar ele acima do peso é considerado maus-tratos. O instituto interrompe o processo e recolhe o cão. Pegou, cuida direito!
Esse cão tem em média 10 anos de trabalho, após isso se aposenta e segue o restante da vida somente como cão normal.
Sim! Também me perguntei: Como eu cega ia limpar suas necessidades? Eles deixam claro: seu cachorro, você cuida! Água, comida, escovação diária, necessidades, vômito, o cego limpa. Eles ensinam também.
Finalizando a terceira etapa, é necessário ter uma excelente mobilidade. O deficiente visual tem que ter confiança em andar sozinho, dar passadas seguras, ter noção de direção e ambiente. Se não consegue ter autonomia com a bengala, não conseguirá andar sozinho com o cão. Eu quase reprovei, pensei que andava bem, mas minha passada em degraus e obstáculos era insegura, batia a bengala, conferia e depois seguia, com o cão isso seria um problema. Recebi ajuda de um professor do instituto e complementei com ex-professores e passei.
Perfil: O grande enigma ou sorte da espera. O perfil do cego tem que casar com o do cão. Os dois têm que andar na mesma velocidade. Se o cego tem uma rotina pesada tem que ser um cão que tenha porte para acompanhar. Se tiver filhos, um cão que goste de crianças, mesma coisa com outros pets.
Então não basta eu querer um cão, tenho que ter um cão no meu perfil, habilidade, responsabilidade, condições para manter e amor para dar.
Sempre me perguntam: Bia! Muito trabalho, não é melhor somente a bengala? Em dia de chuva chega e joga a bengala atrás da porta, já o cachorro tem que secar, maior trabalho.
Decidi que vale a pena pela segurança. Passo em muitos lugares cercados de drogados, bêbados, muitas vezes preciso de auxilio e justamente aí que fui assaltada: enquanto uma pessoa me ajudava a outra abriu minha mochila e levou minha carteira. Minha segurança vale todo esse trabalho sim.
Para concluir, fiz um teste com um cão chamado Quick, é uma troca de energia ímpar, parece que nossos espíritos se ligam: “Quick! Em frente”, quando dou o comando, eu senti todo o movimento do corpinho dele dando os passos e me levando, é mágico. Quando eu elogio, “muito bem”, sinto a energia dele de felicidade em me ajudar. Mágico!
Quick e todos cães-guias desejo que achem donos legais e tenham uma vida muito feliz.
Sigo na espera do cão-guia, quem gosta de bengala siga com ela, quem gosta do cão siga com ele, somente não fique em casa e deixe de seguir.