Meio da tarde no centro de Osasco, um dia qualquer de um outono nem tão outono assim e com o comércio tentando reagir sob a crise da pandemia. A avenida João Batista está sendo redesenhada por construções de lojas que prometem desafiar o vizinho e famoso calçadão da Antônio Agu – que só perde para o sacolão da 25 de Março.
Ali, no número 85, tem a Cia. Francana que, como o nome sugere, é loja especializada em couro da gema. Quem assina esse sucesso é Michel Gomes, 60 anos e orgulhoso pela história que vem do interior paulista para se tornar osasquense.
Olhar atento, postura forte mas sem perder os caprichos da fala como bom comerciante de couro, Michel é mais um empreendedor de sucesso fazendo Osasco crescer ano a ano. E ponto final, certo? Não, ainda sem ponto porque a história segue.
Os clientes dele são temáticos, vaidosos quanto ao estilo etc. Chegam lá e até proseiam causos idos enquanto olham os produtos. “Aqui tudo é original, da cinta à carteira”, diz Michel ao levantar a camisa e mostrar o couro artesanal enfeitando a calça. E nessa mesma toada em que fala da casa e dos produtos, ele aponta para o fundo da loja: “É meu filho, paralímpico em Pequim 2008”.
O quê? Replay nessa fala, caro Michel! O que você está dizendo? Isso mesmo, na maior tranquilidade como que tomando um bom cafezinho coado a pano, ele diz que o moço logo à frente é um ex-paralímpico do Brasil. Enquanto o pai fala, lá está Magno Marques parado, sorridente e segurando algumas caixas de sapato.
A loja tem o pai e quatro filhos no comando, todos faixas-pretas. Magno é um deles, garoto de 30 anos e que nasceu de cinco meses. Sim, tudo muito apressado na vida do moleque que precisou lutar minuto a minuto pela vida. Essa precocidade para nascer custou-lhe desafios intensos mas nunca tirou-lhe o prazer de viver.
Magno conheceu a luta e se apaixonou, rapidamente encaixou-se no judô e pronto, dá-lhe treinos e competições. No entanto, chegava um momento que sentia mais dificuldades contra atletas normais – um dos preços que pagava por ter vindo precocemente foi a visão. Com o passar do tempo na luta, o grau de risco aumenta e já não dava mais para o kimono regular.
Certo, para isso existe o esporte paralímpico e Magno parte para esse tatame plenamente. O moço passa a varrer todas competições e não demora nada para chegar à seleção brasileira. Pan-americano do Rio em 2007? Veja o medalha de prata, é Magno Marques!
Esse pódio fantástico foi o passaporte para a Paralimpíada de Pequim 2008. No desfile da delegação, ele com o agasalho brasileiro realizando um sonho dado irreal: “Não dá pra descrever esse momento, já faz tempo mas parece que foi ontem.”
Após lutar em Pequim, voltou já ouvindo que era hora de aposentar o kimono para preservar a visão; mas relutou e em 2011 estava levantando a medalha de prata no Pan-americano de Guadalajara, pódio que o qualificava para Londres 2012. Tudo ajustado mas o judoca não seria aprovado pelo comitê médico.
Sim, duas vezes vice-campeão pan-americano e selecionável, Magno não teve mesmo condições de competir a segunda Paralimpíada. No entanto, Pequim 2008 segue vivo nas lembranças e no sorriso desse rapaz que esbanja energia e amor pelas artes marciais.
Ele não pode mais treinar mas sabe tudo de judô, é um estudioso com muito conhecimento. Quem reforça isso é o orgulhoso Michel, o já citado empresário de sucesso e contador de causos. No entanto, cabe um parêntese que tem a ver com essa história de Magno e dos irmãos, todos faixas-pretas.
De onde eles tiram a paixão pela luta? Aliás, o nome de Michel termina com Paixão e ele manifesta isso em tudo que faz. Poucos sabem, por trás desse empreendor bem-sucedido há veias de lutador. Os clientes de Michel agora ficam conhecendo um pouco mais dele, aqui pelo Correio Paulista: quando rapazinho, vivia no Rio de Janeiro e era ratinho de academia treinando com todos aqueles caras que hoje formam a base lendária do MMA.
Estamos falando da família Grace, também. E ali naquele tatame, Michel viu o grão-mestre e patriarca Hélio em ação; no mais, treinava com caras que seriam monstros na luta mista. “A gente já fazia vale-tudo antes mesmo disso explodir”, lembra Michel, naquela simplicidade de sempre.
Ele não só se formou em judô, tem jiu-jítsu e karatê na faixa, além do taekwondo. Quem for à Cia. Francana na João Batista, olhe então para as mãos de Michel e logo verá os dedos calejados. Sim, o lutador de chão costuma ter as orelhas detonadas pelos rolas no tatame, o de trocação parece que tem soco inglês nas mãos.
Londres 2012, por pouco
Magno não teve pódio em Pequim 2008 mas o judô brasileiro festejou uma medalha de ouro, duas de prata e duas de bronze. Pelo vice-campeonato no Pan de Guadalajara em 2011, naturalmente estaria em Londres.
Chegou perto disso porque teve impedimento médico e ficou na reserva. Depois, entraria em contagem regressiva para pendurar o kimono e preservar a visão. No judô paralímpico o comitê qualifica atletas nas categorias B1, B2 e B3: a primeira é para deficiência total, a segunda é para quem pode distinguir vultos, a última é para quem distingue imagens.
Magno Marques mantém a paixão pelo kimono que hoje é pura saudade para ele; e valoriza cada dia da vida como ippon (golpe perfeito) de saúde e de sucesso. Na loja da família na João Batista, ao ouvir o pai falando de Pequim 2008, o moço sorri largamente, coloca as caixas de sapato sobre outra pilha e se aproxima com passos firmes, como que entrando no tatame…