
Nunca sonhei com chá revelação, barriga de nove meses ou enxoval bordado com nome. O que eu queria mesmo era ser mãe. E foi assim, sem glamour de ultrassom ou book gestante, que a adoção entrou na minha vida — com a mesma naturalidade de quem escolhe o caminho que já nasceu pra seguir.
Na época, eu era casada com um homem que sentia o mesmo. E agimos: papelada, curso, entrevistas, espera. Dois anos depois, veio a Vitória — em todos os sentidos. Escolhemos adotar uma criança negra. Sim, dois brancos escolhendo o caminho menos “instagramável” da maternidade. Foi aí que a realidade bateu forte: o racismo. Não aquele escancarado — o que te dá vontade de reagir. Mas o mais covarde: o velado, o que exclui em silêncio, o que machuca sorrindo.
Vitória estudava numa escola cara. Cara, demais para ter mais alguém como ela. Lá, ela era “exceção”, a cota informal, o silêncio incômodo no meio da brancura homogênea. A escola? Omissa. Os coleguinhas? Educados. Educados demais para dizer com palavras o que faziam com atitudes. E nós? Ingênuos. Achamos que poupando ela dá dor, ela não sentiria. Achamos que amor era suficiente. Spoiler: não é.
Ela me disse uma vez, já adolescente:
“Mãe, o problema nunca foi ser adotiva. Foi ser preta filha de branca.”
Aquilo me rasgou.
Você acha que vai protegê-la do mundo. Mas o mundo não pede licença. O mundo entra com os pés sujos e senta no sofá da sua sala. Nos Estados Unidos, numa loja, ela me perguntou: “Por que todo mundo acha que eu trabalho aqui?”
Como se uma menina preta só pudesse estar atrás do balcão — nunca fazendo compras com a mãe branca. E então veio a pandemia, e com ela, a depressão. Diagnóstico duro. Tratamento, psiquiatra, psicólogo, amor. Vencemos mais uma.
Hoje, Vitória tem quase 19 anos. Estuda Ciências Biológicas, fala de sustentabilidade, quer salvar o planeta — talvez porque entenda, na pele, o que é ser parte de um mundo que insiste em excluir.
Adotar nunca foi sobre caridade. Nunca quisemos ser heróis. Só queríamos ser pais. Mas, no fim, entregamos ao mundo uma mulher que vai transformá-lo — e isso, sim, é revolução.
*Dra Simone Neri, médica e gestora em Saúde pela FGV para a coluna Saúde Para Todos